Carta às feministas amigas de homens agressores

Olá, irmã. Sei que ele é de esquerda, parece um cara legal, ligado aos movimentos sociais, faz poesia, música, fala de amor livre, fala de feminismo e sei o quanto isso parece sedutor. Mas também sei que ele embebeda meninas para ficaram mais “facinhas”. Sei que ele trata a namorada como empregada em casa. Sei que ele a agredi fisica/emocionalmente/psicologicamente, controla suas roupas, enquanto ele banca o revolucionário sensível nas assembléias estudantis. Sei que ele coage meninas novinhas, tem o dom da comunicação, e usa do discurso libertário para coagí-las. Sei que ele também usa do discurso de liberdade sexual para supostamente “libertar” as mulheres do seu recalque com sexo, suas “frescuras”, medos e traumas, e assim, poder tê-las disponíveis sexualmente em maior número possível. Sei que ele julga e culpa as meninas que não querem transar com ele, as chamando de conservadoras, comenta com os amigos quais são “fáceis” e quais não são. Sei que ele já insistiu para transar com uma menina, mesmo depois dela dizer que não queria. Sei que ele já prometeu cuidá-la quando bêbada, e a estuprou. Sei que ele é pai, e deixa toda a responsabilidade de criação do filho com a mãe. Sei que ele não dá pensão, sei que ele não tá nem aí para a criança, e muito menos para a mãe do filho dele.

Eu sei que o seu amigo é um agressor, estuprador.

Você também sabe. Você sabe de tudo isso e ainda continua saindo com ele. Ainda vai na casa dele, vocês vão nos mesmos bares. Vocês ficam bêbados juntos, se drogam juntos, conversam, trocam ideia, experiências. Você se afastou da vítima quando ela relatou que seu amigo é um agressor, mas continua amiga dele. Será que ele é diferente com você? Você acha que ele pode ter mudado e se arrependido do que fez com outras mulheres? Você acha que enquanto feminista pode educá-lo? Ele até parece concordar com você quando conversam como o machismo é ruim e isso te faz ter esperanças e faz você se sentir especial por ser amiga dele? Ele diz que você é diferente das outras, que elas são loucas, muito radicais, mas que você sim é feminista de verdade? Ele te compara com outras mulheres as colocando em posição de inferioridade para te fazer se sentir especial? Ele coloca a sanidade em cheque da ex namorada que o denunciou para fazer a denúncia parecer mentira? Estes são mecanismos frequentes que homens agressores usam com as mulheres para nos colocarem uma contra as outras. Ele não te acha especial, ele faz isso porque sabe que se você acreditar nela e se unir à ela, as coisas ficaram mais complicadas para o lado dele.
Gostaria de entender o que te faz continuar amiga de um homem que também pode te agredir. Porque esse cara não agrediu só uma, ela não foi exceção. E nenhuma mulher é exceção. Você não é exceção. Você se sente verdadeiramente segura de beber com um cara conhecido por embebedar meninas e estuprá-las?
Você já percebeu que a vítima sumiu dos lugares que frequentava (muito provavelmente por ter medo ou se sentir desconfortável de encontrar seu agressor no mesmo local)? Você percebeu que a mulher que, corajosamente, denunciou o estupro e a agressão, teve poucas pessoas que acreditaram no que ela disse (sendo isto uma consequência da sociedade misógina, e você também sabe disso, você é feminista como eu), enquanto todos relativizavam a violência que ela sofreu, o cara agressor continua com o mundo todo para ele? Continua com as mesmas amizades, recebendo apoio, com a mesma autonomia para ir e vir de todos os lugares que queira. Todos fingem que nada aconteceu. A fraternidade masculina, o grupo de homens com o qual o agressor convive continua intacto. Os amigos dele não farão nada, nós sabemos disso. 
Mas muita coisa mudou na vida dessa mulher que foi vítima. Eu sinto a dor dela. Ela sou eu, é você, somos todas nós. Se não cuidarmos uma das outras, eles não farão pela gente. Enquanto feministas, sabemos como é difícil termos apoio de outras mulheres, sabemos como nossa união é temida, a rivalidade feminina é muito forte, mas nós podemos superar isso. 
Eu sei o quanto é difícil tomar uma atitude mais incisiva com homens agressores. Sei quais são as consequências disso, que vão desde isolamento político até mudança radical na nosso grupo de convívio. E isso dói, não é fácil. Não é fácil trabalhar a independência de homens, sei que vai ter backlash. Sei que vai ter macho nos corredores da faculdade, do bar, na rua te difamando para outras mulheres. E outras mulheres apoiarão o que ele diz, seja por medo de bater de frente, seja por insegurança, seja pelos laços que criamos com agressores que são tão difíceis de romper. Mas nós não estamos sozinhas e juntas somos mais forte.

A culpa não é minha, não é sua, não é nossa.

Nossas irmãs antes dos homens. Sempre.

Feminismo e “liberdade” sexual

A construção do arquétipo do “ser mulher” envolve castidade, pureza, feminilidade, submissão e obediência. A mulher que procria mas não faz sexo, que não tem desejo, apenas serve ao seu marido e cumpre seu papel social de encubadora e cuidadora, é uma ideia que se materializa em discurso cristão masculinista que permeia as instituições que fazem parte da estrutura heteropatriarcal. A forte repressão sexual a qual às mulheres sempre foram submetidas, o sentimento de culpa, o nojo aos nossos corpos e nossos fluídos, o prazer que nos é negado, reflete de forma negativa na vida das mulheres, que desde à tenra idade de socialização, são proibidas de conhecer os próprios corpos. Masturbação é pecado. Sexo é pecado. A vagina é um orgão desconhecido, sujo, fedorento. Não toque, não sinta prazer.

Desde os anos 60, com o advento e popularização do anti-concepcional, muito se fala em “libertação sexual”, como uma forma da mulher emancipar-se destas repressões que restringem uma vida sexual onde o prazer da mulher seja então, considerado importante, e que o sexo não fosse considerado apenas uma forma de procriação. O anseio por liberdade é legítimo, e é realmente sedutora a ideia de que podemos ser “livres” e mergulhar em um mar de orgasmo, ressignificar termos misóginos (como vadia, puta, biscate, vagabunda) e apropriá-los para si como uma forma de subversão. Mas essa ideia superficial de uma suposta liberdade individual dentro de um contexto opressor é danosa para a saúde física e emocional de mulheres, principalmente as jovens, que já estão sob pressão social para “liberar o corpinho”, mas que mal sabem como se usa uma camisinha, que não tem acesso à educação sexual e muito menos o feminismo. Que são estupradas pelos namorados, pelos amigos, que são expostas na internet por aquele cara “que parecia tão legal”, que era de esquerda, que era até “pró-feminismo”, que até ousam à auto afirma-se feministas, numa evidente tentativa colonização do único movimento social destinado às nossas pautas.
O movimento das mulheres não reivindica apenas a liberdade de “dar para quem quiser”, mas principalmente a libertação total do controle masculino sobre as mulheres. Nada mais conveniente para os homens que mulheres estejam sempre disponíveis, mulheres sem pudores, que adoram sexo, não tem nojo de pênis, que façam menáges, que trepam compulsoriamente. Nada mais conveniente um feminismo que “libere” mulheres ao desejo masculino. Essa suposta carta de alforria mascara uma face do patriarcado, onde os corpos das mulheres ainda são propriedade masculina. Onde o nosso “sim” vai ser sempre consentido, mas onde o nosso “não”, ainda é deslegitimado. Em uma sociedade onde ainda se acha aceitável embebedar mulheres para que fiquem “mais soltinhas”, onde estupro marital é ignorado, onde sempre existiu o discurso de que tudo se resolve com um orgasmo ou uma “boa fodida”, um pênis, um homem “que te pegue de verdade”, a suposta liberdade sexual nada mais é que uma manobra do patriarcado para que homens tenham acesso de forma facilitada aos corpos femininos. Resistir e negar-se ao sexo heterossexual é uma afronta à supremacia masculina. Lésbicas são marginais mesmo dentro do feminismo heterocentrado, onde “eu não beijo homem, só beijo mulher” é sumariamente abafado pelos gritos majoritários das feministas heterossexuais. Mulheres são odiadas, mulheres que amam mulheres são um perigo à ordem e ao status quo. A heterossexualidade como regime político nos coloca em posição de rivalidade, brigamos uma com as outras, competimos pelos machos que nos controlam e que a qualquer momento podem nos violentar. Essa mesma violência é normalizada, que nos faz temer em denunciar quando somos violentadas, e quando não nos calamos, nossas denúncias não são ouvidas. Nós fetichizamos relações de poder das quais nós saíremos vítimas, nós estamos sequestradas e sofremos coletivamente de síndrome de estocolmo. Ao discutir politicamente sobre sexo, não podemos dissociá-lo da violência sexual, como se não tivesse nenhuma relação com a opressão das mulheres. O domínio masculino sobre o corpo das mulheres, sexualmente e reprodutivamente, provê a base da supremacia masculina, a opressão na sexualidade e através dela diferencia a opressão de fêmeas da de outros grupos.
O quão libertador pode ser um discurso que reintera e alimenta a lógica patriarcal? É de suma importância que não ignoremos estruturas concretas que ainda não foram superadas: a supremacia masculina ; onde sexo é poder, heterossexualidade é um regime político, que o orgasmo pode ser tido através de violência (vide estupro), que mulheres ainda são obrigadas a servirem o desejo masculino dominante, são objetificadas pela pornografia, exploradas pela prostituição que tem como base o capitalismo sexual, e que estão sendo pressionadas nos meios supostamente libertários a serem fodidas para “provar que são livres”. Esses mesmos machos libertários que “apoiam o feminismo”, só apoiam até onde convém: quando mulheres estão sexualmente à disposição, quando são didáticas e maternais com os “pobres homens que também são oprimidos pelo machismo”, quando não são tão “radicais”, quando não denunciam agressores, quando não incomodam, quando não são feministas.
Enquanto mulheres com consciência de classe e do contexto social opressor existente, nossa análise e nossas estratégias de libertação, do discurso que escolhemos e das mulheres que desejamos alcançar deve ser repensado. O discurso liberal e leviano que teoricamente propõe uma libertação sexual das mulheres, é uma assimilação do patriarcado, retira o conteúdo de violência inerente à heterossexualidade e nos dá a ideia equivocada de libertação.

Felicidade revolucionária

SE FODER esse povo que quer exigir alegria de oprimido. Que “alegria é a maior das revoluções”, que acha lindo dizer que “o povo da favela é o mais feliz” (bem coisa de rede globo reproduzida em discurso pós-moderno).
É bem difícil ter alegria quando você acorda com um soco e dorme com um murro.
E esse discurso é usado como mecanismo de dominação, para normalizar e invisibilizar a falta de recursos básicos das minorias. Gente que passa fome, gente que é explorada, gente que é vítima de violência, de abuso, de estupro, gente que não é vista e nem tratada como gente mas é feliz. Gente feliz não reclama, não questiona; gente feliz é feliz mesmo sem o mínimo, sendo margem, sendo vista como um pedaço de carne, mesmo sendo vítima de genocídio. Gente feliz consente a própria opressão. Gente feliz não se importa em servir, em obedecer. Gente feliz gosta de ser dominada por amor ao seu opressor. Gente feliz é cristã, branca, e rica. Sempre tá nas novelas, nas revistas, nos programas de televisão, nos comícios. Gente feliz é sinônimo de sucesso, consegue emprego, aguenta o emprego, aguenta o patrão com um sorriso na cara. O patrão adora gente feliz.
Gente pobre tem depressão mas não sabe que tem. Depressão é coisa de rico. Psicólogo, psiquiatra, médico: tudo coisa de rico. É engolir o choro, a mágoa, a raiva contida e o discurso elitista de que é feliz. Dividir a fome com os filhos: felicidade é realmente revolucionária.

Vão à merda.

Mulheres e mercado de trabalho

Hoje fui à uma entrevista de (sub) emprego, numa empresa multinacional que recruta, em sua maioria, jovens sem experiência profissional anterior. Ao final do processo seletivo, tive uma entrevista com o supervisor que fez algumas perguntas específicas: como está seu ciclo menstrual? quando você menstruou pela última vez? você usa contraceptivos? pensa em engravidar de novo?
Só faltou ele perguntar qual foi a última vez que eu trepei (com um cara, obviamente). Além de ser super invasivo, é violento. Ele não fez isso porque queria ser meu amigo e trocar uma ideia na inocência. Fez porque se eu estivesse grávida ou quisesse engravidar e tivesse sido sincera o suficiente para dizer isso, era o momento ideal para ele dar uma desculpa estapafúrdia e não me admitir. É prejuízo para a empresa. Mulher produz menos porque tem TPM, porque tem que faltar para levar o filho no médico, entra de licença maternidade. Mulher não tem nem que trabalhar: tem que ficar em casa cuidando dos filhos. E não faltam relatos de mulheres que foram demitidas (sem justa causa, óbvio) logo que comunicaram a gravidez.
E os poucos homens que participam do processo seletivo esbravejaram quando souberam que o auxílio creche miserável era só para mães sob o argumento de preconceito. Homens não recebem auxílio creche porque não são eles que cuidam dos filhos. Não é a função deles.
Trocaria todos os espaços restritos e confinados, as responsabilidades de cuidadora exclusivas e a merda do auxílio creche para ser vista para além de uma incubadora, de misoginia institucional, só para variar.

Enquanto isso tava rolando uma entrevista para outro cargo ao lado da que eu estava. De lá saíram meia dúzia de homens brancos, altos, de terno e gravata. Imagino que não seja para atender telefone e ganhar um salário mínimo por mês. Imagino que ninguém tenha perguntado se eles tem filhos, se eles usam camisinha, se eles pensam em engravidar (rs). Imagino que o patriarcado, inclusive, seja só uma nuvem de fumaça e discurso, performance, teoria pós moderna na academia.

O parto que me foi roubado

Eu nunca escrevi sobre como foi o nascimento do meu filho. Quando penso naquele 02/06/2010, sinto um nó na garganta e o coração apertado. Não tenho boas lembranças do dia em que eu esperava, planejava e preparava, que seria um momento único e especial na minha vida. Até porque não foi o dia nem que eu, nem o meu filho escolhemos.
Eu tinha recém feitos 17 anos e estava de 38 semanas, até então nos conformes para um parto normal. Até que, no que foi o último ultra-som da minha gravidez, foi contastado que o peso fetal estimado estava acima da média, o que queria dizer, que ele era grande para idade gestacional. Com a margem de erro, ele já estaria pesando mais de 4 quilos. O médico, que desde o início da minha gravidez me indicava obcecadamente a cesárea (dizia orgulhosamente que as quatro filhas dele nasceram de cesárea), disse que não faria meu parto normal nestas condições. Disse que meu filho poderia morrer, ter a clavícula quebrada, ficar paralítico e eu teria a vagina mutilada. Sugeriu que eu fizesse a cirurgia no dia seguinte. Eu questionei sobre esperar ter contrações para fazer a cesárea, se fosse o caso. Não queria marcar um dia para isso. Mas ele disse que se o bebê já estivesse encaixado, eu teria que pari-lo e teria que ser tirado à fórceps. Eu consenti ir para cesárea no dia seguinte. Esse “consentir”, permeado de medo, insegurança, dúvidas e pressão externa. Eu não queria cesárea. Eu queria parto normal e estava segura disso. Mas a pressão foi tanta que eu cedi. Não queria ser responsável pela morte do meu filho que ainda nem tinha nascido.
Pedi para que o pai do meu filho entrasse junto comigo na sala de cirurgia e fui impedida, mesmo eu tendo insistido algumas vezes. Fui para a sala em prantos e até pensei em fugir, sair correndo. Chorava muito, não conseguiam achar o ponto certo da anestesia na minha coluna e tentaram várias vezes. Minha barriga estava muito grande, e eu não conseguia ficar na posição correta para a anestesia, então dois médicos me empurraram, um de cada lado, para que eu pudesse ser anestesiada. Me empurraram com força, e eu gritei de dor quando a agulha enorme entrou na minha coluna. Quando nesse momento, um dos médicos disse que “é o preço que se paga”. O preço que se paga por ter feito sexo? Por ser mãe adolescente? Fica aí a reflexão.
Tive os dois braços amarrados, não sentia mais as pernas. Continuava chorando e o anestesista vez ou outra perguntava como eu me sentia. Mas eu não conseguia responder. Parecia que ele era o único que lembrava que eu estava ali, enquanto os médicos conversavam entre eles sobre assuntos aleatórios. E um certo momento o médico avisou que o bebê “ia nascer”, mas eu não sentia nada, me sentia impotente, me sentia um pedaço de carne. Foi quando escutei o choro do meu filho pela primeira vez, e eu chorei junto, e choro toda vez que penso nisso – como faço agora. Eu estava ansiosa para vê-lo, mas estava fazendo todos aqueles procedimentos horríveis que fazem quando o bebê nasce de cesárea. Ele realmente tinha nascido com mais de 4 quilos, exatos 4,445 kg e 51 cm. Depois de alguns minutos, vieram mostrar meu filho enrolado num pano. Era um misto de sentimentos: sentia que tinham arrancado um pedaço de mim, e que aquele não era o meu filho. Embora racionalmente sabia que era, ainda não tinha conseguido digerir toda aquela situação. Eu não pude pegá-lo no colo quando ele nasceu. Não pude amamentá-lo na primeira hora de vida. Levaram meu filho de mim e me colocaram na sala com outras mães que também tinha feito cesárea e estavam esperando a liberação do anestesista para ir para o quarto e ver os filhos. Era um ambiente horrível, um pouco escuro, várias mães desacordadas, com as barrigas cortadas, uma ao lado da outra. Me senti numa carnificina. Fiquei quase três horas nessa sala porque o anestesista estava ocupado e não podia me liberar.
Depois disso pude ver meu filho. Comecei a produzir leite aos 4 meses de gestação, e já tinha descido mais. Mas meu filho teve dificuldade para pegar o peito e nenhuma enfermeira podia me ajudar porque estavam todas ocupadas. Me virei como pude. Quando finalmente pude levantar da cama, parecia que o meu corpo tinha se dividido em dois. Era muita dor, era difícil andar e ficar sentada. A recuperação foi muito dolorosa. Fisicamente nunca mais vou ser a mesma. Tenho uma cicatriz que nunca vai deixar eu esquecer pelo que eu passei. Arrancaram meu filho de mim. Não sei se o parto normal seria bem sucedido no caso. Poderia ser que ele chegasse até os 5 kg se chegasse às 40/41/42 semanas de gravidez. Poderia ter sido realmente complicado. Mas todas as informações que eu tenho hoje, um maior empoderamento e conhecimento com meu próprio corpo, me dizem que eu era capaz de parir naturalmente. E que eu ainda sou. E que muitas mulheres são e tem tido suas potências reprimidas pelo patriarcado, pela medicina e pela indústria da cesárea. Meu corpo dizia que eu era capaz, eu sentia nas minhas entranhas as energias ginocentricas que eu era capaz. O corpo fala, o corpo é força, o corpo é potência e nós precisamos estar atentos à essas energias fisiológicas e escutar o que o nosso corpo tem a dizer. E agora nossos corpos e nossos conhecimentos milenares estão sendo substituídos à força pelo domínio masculino, capitalista, violento. Nos querem fazer acreditar que não somos capazes de lidar com nossa capacidade biológica. Temos nosso protagonismo retirado, e esses bebês tem tido seu primeiro contato com o mundo de forma muito violenta e fria. E a mãe submetida à inúmeros procedimentos desnecessários tanto na cesárea, quanto no parto normal. Mulheres que não podem fazer suas escolhas, que são não tem sua autonomia respeitada, seu corpo sob domínio próprio. É mais uma prova que o nosso corpo é de controle masculino, que as regras são masculinas e que nós somos vistas e tratadas como protótipos de encubadoras.
Chegamos num ponto absurdo e inimaginável, em que sequestram uma mulher de dentro da sua própria casa, levam para o hospital contra sua vontade e cortam sua barriga. Tudo isso com ajuda do braço armado do Estado misógino nojento. O mesmo Estado que proíbe mulheres de abortarem com segurança, não nos dá o direito de parir como onde e quando quisermos.

Parir não deveria ser um crime. Esse é só mais um exemplo da misoginia institucionalizada que permeia todas as esferas das vidas das mulheres. É preciso descolonizar nossos corpos, é preciso despatriarcalizar a maternidade. Chega de silêncio, nós vamos nos fazer ser ouvidas. Nós vamos gritar. Te cuida cesarista, a maternidade vai ser toda feminista!
Mães lutam e resistem!

oparto

Ódio às crianças

Por que é aceitável que se diga que “odeia crianças”?

Nós, mães, precisamos que os espaços feministas sejam inclusivos para crianças, para nos incluírem também. Precisamos revejamos o ódio direcionados à uma minoria esquecida, que está intimamente ligada à figura da mulher à milênios: as crianças. Não pode mais ser aceitável que em um ambiente feminista (ou qualquer outro) seja aceitável dizer que se odeia crianças. Entendo perfeitamente uma mulher que não queira ser mãe, e tem todo o meu apoio. Mas entre não querer ter filhos e odiar crianças e externalizar isso em um ambiente que combate opressão tem um abismo gigantesco. Crianças não são seres com privilégios ou estão oprimindo alguém. Crianças estão conhecendo as normatizações sociais e sendo obrigadas a se adaptar à elas. E, ambos considerados seres de capacidade inferior e não pensantes, mulheres e crianças, ficam nos mesmos espaços restritos e confinados, e nossa existência, se torna interligada e co-dependente. Crianças são minoria esquecida e precisamos ouvi-las, e lutar por elas. Crianças tem seu potencial questionado e reprimido assim como as mulheres. Cada um escolhe às frentes de batalha que lhe cabem (até por uma questão de vivência e protagonismo) mas reiterar ódio à uma minoria não pode ser aceitável. É de suma importância que as crianças de hoje conheçam espaços que combatam opressão, espaços plurais e feministas. Sabemos que a educação se tornou mercadoria, e as escolas funcionam como pequenos campo de concentração de lavagem cerebral fascista, machista, lesbofóbico, racista, misógino. Que aprendam a conviver com as diferenças e para, quem sabe, se tornarem adultos menos intolerantes e opressores. Não vivemos numa bolha feminista, e a responsabilidade da criação não é apenas das mães. É uma responsabilidade coletiva e social. O mundo também é das crianças.

O mito da escolha do feminismo liberal

“Feminismo me dá a oportunidade de escolha. Se eu quiser colocar silicone pra me sentir melhor e mais bonita eu coloco! Meu corpo, minhas regras!”

Se “sentir melhor” porque somos obrigadas a acreditar que não somos bonitas como somos, a odiar nossos corpos, pressionadas a se adequar à um padrão de consumo masculino. Querem nos convencer que precisamos de procedimentos médicos e intervenções cirúrgicas perigosas, que beneficiam à industria farmacêutica capitalista, a indústria da beleza, que mutila e MATA mulheres todos os dias. Se “sentir mais bonita” para quem? Por que? Se não existisse uma mídia que nos obriga a ser jovens e condena a velhice feminina (porque homens ficam inclusive mais bonitos depois de velhos, nenhum homem tem seu valor vinculado ao quanto ele se encaixa ao padrão estético vigente) e uma sociedade que não nos vê como objetos sexuais, será que sentiríamos necessidade dessas intervenções para nos sentir mais bonitas, desejáveis e disponíveis aos homens? Essa feminilidade existe para um propósito, não existe por e para ninguém; agrada aos olhos masculinos, nos obrigando a usar roupas desconfortáveis, apertadas, que nos fazem gastar o que não temos em lojas de produtos “de beleza”, que nos infantiliza de forma nojenta ao nos impor que tiremos praticamente todos os pelos do nosso corpo, enquanto nossos cabelos tem que ser lisos e compridos, caracterizando feminilidade e delicadeza.
Nossas escolhas pessoais não são meramente um empoderamento individual, é permeada de construções e internalizações de misoginia. Já existe toda uma sociedade, programas de televisão voltados ao público feminino que atinge grandes massas que dizem que é “ok” você fazer essas intervenções cirúrgicas estéticas para se sentir mais bonita, que inclusive nos estimulam à isso.
Enquanto feministas, nós PROBLEMATIZAMOS essa noção de escolha pessoal, nós não normalizamos ou achamos aceitável que nenhuma mulher seja mutilada para se adequar à um padrão, ou morrer tentando atingir esse padrão. Nós queremos a destruição desse padrão de feminilidade que nos mantém em controle e submissão, a retomada das nossas auto-estimas esmagadas por milênios de ódio ao nossos corpos. O feminismo nos empodera a nos libertar desse controle, para que não sintamos necessidade dessas intervenções para nos sentir bem com nós mesmas.
O que não quer dizer que todas as mulheres do mundo vão se empoderar de um dia para o outro e deixarão de se maquiar. É um processo lento, doloroso, e muitas de nós não estão preparadas para fazê-lo nesse momento. Mas não vamos deixar de falar sobre isso, mesmo que incomode – e vai incomodar.
E nem por isso uma feminista que se depila deixa de ser feminista. Toda mulher é uma feminista em potencial, as que tem prótese de silicone, as que fizeram cesárea, as que alisam o cabelo, as que se depilam e usam salto. Mas não vamos ceder a lógica patriarcal, o feminismo não nos dá “escolha” para ser controlada. E enquanto feministas, quando problematizamos essas questões, não estamos obrigando nenhuma mulher a deixar de usar maquiagem, nós não temos poder para isso. Não existe um “padrão de beleza feminista”, não existe uma mídia que representa mulheres gordas, negras, com estrias, celulites, cicatrizes, seios pequenos, flácidos em pleno horário nobre televisivo ou nas grandes revistas de moda. Nós não temos grandes multinacionais que precisam vender produtos e obrigar você a achar que deve usá-los para ser feliz. Quem está nos obrigando a acreditar nisso é o patriarcado, esse que, como sistema vigente, tem mecanismos de controle específicos e naturalizados, que tem agentes diretos dessas opressões.
Feministas não são inimigas das mulheres ou das escolhas das mulheres, é isso que querem nos fazer acreditar, quando como colocam que “toda feminista é gorda peluda, lésbica” e por isso você precisa ser diferente “dessas loucas”. Nosso inimigo são os homens que controlam nossos corpos, que comandam todas as instituições do patriarcado e que nos fazem acreditar que escolhemos nos adequar ao padrão estético heterossexista, que escolhemos ser oprimidas, que somos culpadas pela nossa própria opressão e consentimos nossa própria exploração.
Feminismo não é reafirmar status quo.
O feminismo liberal não nos salva.

 

Nota sobre o “dias das mães”

Além de ser algo puramente midiático e comercial, o dia das mães é só mais uma forma de reificar essa celebração mítica falaciosa de instinto materno e nos parabenizar por nos mantermos nos nossos devidos lugares de submissão. É tudo uma grande bosta. A família nuclear escraviza o sexo feminino. A mãe, a filha, a vó. Todas nós somos servas dos patriarcas. A família é um fracasso. O almoço de domingo é um fracasso, é uma convenção social da supremacia masculina falida. Estamos todas morrendo de indigestão com os cadáveres de frango do almoço convencional, do silenciamento dos estupros maritais, abuso infantil, toda a violência doméstica calada, toda a cicatriz escondida, todo grito abafado para a vizinhança não achar que não somos uma família perfeita e feliz. Por trás de cada propaganda da coca-cola, margarina e boticário que nos parabeniza pelos “serviços prestados à família, nosso amor incondicional pela prole e nosso esforço por manter o bem-estar doméstico”, existe bilhões de mulheres sendo escravizadas e estupradas, mulheres sendo obrigadas a engravidar compulsoriamente, sendo mortas por serem mulheres, por abortarem. Ser mãe é o ápice da exploração patriarcal.
mãe

SENALE, desaparição dos espaços de resistência lésbicos, políticas identitárias e separatismo

O pós-estruturalismo que se infiltra no movimento feminista está despolitizando e descentralizando as pautas do movimento das mulheres. E uma das táticas disso, é a ressignificação do conceito de feminismo, ou uma ampliação do que seriam vários conceitos de “feminismos”. Temos que retomar o conceito de feminismo, e, a partir desse conceito, é inevitável que surjam diversas táticas de combate ao patriarcado. Essa abertura, relativiza e desestabiliza as forças que sempre pulsaram na base do movimento (ou seja, as próprias sujeitas, as lésbicas) e que lutam por pautas específicas e materiais, por termos realidades materiais e opressões materiais. A segunda onda feminista foi de onde mais saíram escritoras e teóricas, e, infelizmente, estão sendo apagadas à força pela academia engolida pela teoria queer, e, mais recentemente, o ativismo trans. Uma das consequências dessa relativização do conceito de feminismo, é também a relativização da identidade lésbica. Se para os liberais não existem estruturas, tudo é auto-identificação e relativismo, então qualquer um(a) pode ser lésbica, qualquer um pode ser mulher. Basta se “identificar” com essas categorias. O que eu vi no SENALE foi a materialidade do que antes só estava na academia e em ambientes restritos. Me assusta ver feministas marxistas e materialistas fechando com o conceito de “identidade de gênero” e mais surreal que isso só mesmo “falo lésbico”. Me pergunto se isso é uma tática partidária, ou se é falta de formação política da juventude feminista. Qualquer uma das duas, é extremamente preocupante e me faz temer o rumo que o feminismo está tomando enquanto movimento político, e quais pautas concretas, a curto, médio e longo prazo, nós queremos trazer para a realidade das mulheres lésbicas. Essa “união” e uma teórica “visibilidade das bissexuais” está desarticulando o único movimento que ainda tínhamos para falar sobre nós, sobre as nossas vivências, e nos organizamos politicamente enquanto sujeitas autônomas, de um feminismo revolucionário, e não mais um espaço colonizado, em que as lésbicas são secundarizadas e marginalizadas.Lésbicas existem muito antes do feminismo existir enquanto corrente teórica e movimento social. Lésbicas foram queimadas em praça pública, foram bruxas, foram mortas, foram estupradas. Lésbicas resistiram à heterossexualidade como regime político, foram marginalizadas, excluídas dos espaços públicos e políticos. Lésbicas feministas resistiram à apropriação e invisibilidade do movimento LGBT que sempre foram espaços majoritariamente masculinos que não nunca se propuseram à lutar para um desmantelamento da supremacia masculina, mas sim, uma reforma política para uma “convivência pacífica” entre as ditas “minorias sexuais” e uma manutenção das estruturas patriarcais que mantém as mulheres sob controle masculino. Os espaços gays neo-liberais sempre foram tóxicos para as lésbicas, sempre foram colonizadores e despreocupados com a nossa vulnerabilidade peculiar na sociedade feita por homens e para homens.
radical
Lésbicas radicais propuseram e propõe espaços de resistência apenas de lésbicas com o intuito de fortalecer a autonomia e a militância combativa e organizada. Separatismo é resistência. É tática neo-liberal nos fazer acreditar que temos que nos unir “a tudo e todos”. Gays não vão lutar pelas lésbicas. Gays estão preocupados em manter o status quo e manter o acesso aos nossos corpos mesmo que, supostamente, não tenham desejo pelos mesmos. Trans vão lutar pela identidade de gênero, pela aceitação dos seus nomes sociais perante o Estado, mas não vão lutar efetivamente pela desnaturalização da violência que acomete as fêmeas. Vejam que, dentro do ativismo trans, os homens trans não são destaque, e isso é só uma consequência de um movimento que privilegia o sexo masculino, assim como quase todo movimento social. Se não lutarmos pelas pautas que nos acometem, das quais somos protagonistas, querendo fazer maternagem com outros grupos vulneráveis, estes mesmos grupos não o farão pela gente. O movimento feminista é o único movimento em que existe uma coerção para acolher “à todxs”, como uma grande mãe que luta por todos aqueles que sofrem. O FEMinismo é para nós. Saio deste SENALE decepcionada, sentido falta de FEMINISMO LÉSBICO. O que é uma incoerência absurda em um seminário que tem um slogan de “lesbiandade e feminismos”. Proponho uma união entre as sapatas, em pensarmos em como construirmos de forma autônoma e efetiva um novo espaço de articulação. Mais uma vez, nós estamos saindo dos espaços, enquanto todo o resto se pendura no braço movimento lésbico.

aday

Sobre maternidade, privilégios e feminismo

Uma das formas mais antigas de controle social sobre o corpo da mulher é a capacidade de gestar. Desde o surgimento do patriarcado, a mulher que possuí útero, é vista como gênero inferior, é subjugada e seu corpo é de domínio público. Sua sexualidade é reprimida assim que a vagina é usada para designar seu gênero. Os ambientes públicos são restritos, e nosso corpo é propriedade pública: dos homens, da Igreja e do Estado. Mulheres com útero não tem domínio sobre seu corpo, sua vida, sua autonomia e sua capacidade de gestar.

”Gênero não é um sentimento – é um abuso de direitos humanos contra uma classe inteira de pessoas, “pessoas chamadas mulheres” (Andrea Dworkin). A sociedade generifica o sexo e a mulher que possui útero tem sua opressão naturalizada pela sua identidade reconhecida como subalterna e desprivilegiada na hierarquia de gênero patriarcal. Ter vagina, útero, ovários e a capacidade de gestar tem sido a causa da opressão de metade da população mundial. Mulheres que tem útero possuem sua identidade reconhecida. Mas este mesmo útero que é usado para legitimar o “ser mulher” é usado como uma das mais antigas formas de exploração e de controle da nossa autonomia.

A episiotomia é um procedimento desnecessário em 90% dos partos. Ainda assim, é realizado rotineiramente. Fonte da imagem: Projeto 1:4

Com o surgimento da família patriarcal, a mulher mãe vem sendo oprimida, explorada e vítima de violência de gênero – consequência da misoginia institucionalizada. A violência obstétrica é algo ainda pouco falado até mesmo no feminismo, tendo pouca visibilidade, mesmo sendo algo que acomete um grande número de mulheres e responsável por muitas mortes maternas. Mulheres que se tornam mães biológicas são um arquétipo social, e o ambiente privado, a casa, o “lar”, a família”, se tornam seu “ambiente natural” e obrigatório. Mulheres são vítimas de machismo no ambiente de trabalho, mulheres mães perdem o emprego devido as suas demandas especiais, mulheres grávidas também perdem seus direitos por serem “prejuízo” para o empregador. Mulheres que, muitas vezes, de classe social desprivilegiada, e que tem sua renda como essencial para o sustento de sua família. Mulheres que são vítimas de slutshamming¹, que não tem suas habilidades reconhecidas, que ainda não tem salários equivalentes aos dos homens. Mulheres que lutam pelo direito de creches públicas de qualidade para seus filhos – um direito tão básico e de tão difícil acesso. Mulheres que menstruam são consideradas seres que tem menos capacidade física e intelectual que homens. Mulheres que são, muitas vezes, privadas de estudar e se especializar devido à maternidade, que tem sua autonomia reduzida ao seu encargo biológico. Mulheres que vivem à margem e sob controle intenso de religiões patriarcais, são obrigadas pelos maridos a serem encubadoras, impedidas de previnir uma gravidez indesejada, impedidas de usar contraceptivos. Mulheres que morrem no parto após terem filhos compulsoriamente. Mulheres que tem sua auto-estima destruída após as mudanças do corpo pós-parto. Meninas adolescentes que se tornam mães e são vítimas de julgamento de toda uma sociedade, que tem seus estudos comprometidos, são expulsas de casa e muitas vezes se veem sozinhas e com uma criança para cuidar. Mulheres e meninas crianças que engravidam em casos de estupro, engravidam do pai, do irmão, do tio, do papa, do pastor, de um desconhecido. Maternidade não é sobre privilégio, é sobre controle.

O aborto é um procedimento proibido no Brasil, exceto quando há risco de vida para a mulher causado pela gravidez, quando a gravidez é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. O aborto ilegal e inseguro é a causa da morte de muitas mulheres no Brasil; como, então, afirmar que ser mãe é uma escolha e, mais ainda, um privilégio? Fonte da imagem: Feminismo na Rede

Privilégios são sobre a sociedade dar lugares de fala, direitos e espaços para categorias hegemônicas, são sobre benefícios. Mulheres que tem útero não fazem parte destes espaços, não ditam as normas e não tem domínio sobre suas escolhas. Gestar não vai ser uma mera escolha enquanto a maternidade for compulsória, enquanto o aborto for ilegal e a mulher que o faz, criminosa. E que quando falamos em escolha, não podemos ignorar que esta escolha é permeada de constructos sociais – baseados em normas patriarcas que não dão ganho material ou abstrato algum para a mulher (com ou sem útero). Mulheres são abusadas em casa, na rua, no trabalho e à nós sobra um vagão exclusivo, o tanque de lavar roupa, a segregação, a restrição. Não temos voz, tentamos gritar e somos silenciadas. Não podemos gritar nem ao menos quando sentimentos dor, quando parimos (aliás, mal podemos escolher como queremos nosso parto), porque a sexualidade feminina é feia, suja, pecaminosa. “Na hora de fazer não gritou assim, né?”

Privilégio é sobre paternidade. É sobre como não é incubida o lugar de “pai” toda a responsabilidade de criação dos filhos. Sobre como o pai pode se abdicar facilmente da criação dos filhos e ainda sim não ser subjugado, e ser visto como “vadio”. E as raras excessões de pais solteiros, são dignas de destaque e elogios. E o que essas exceções fazem, minha avó e minha mãe já faziam, e foram para a fogueira pública do patriarcado. Porque mãe “não faz mais que a obrigação” quando cuida de um filho. O pai tem a opção. E quando a educação “não é boa”, adivinhem quem será a culpada? “Cadê a mãe dessa criança?” O pai, muitas vezes, aparece apenas para dizer que existe e passear em locais públicos com a criança. Isso quando o pai reconhece a paternidade. Isso quando o homem não abandona a mulher assim que descobre a gravidez, ou a obriga a abortar, ou a obriga a ter um filho indesejado. Isso quando paga pensão. São eles que tem controle sobre nosso corpo, e somos nós que vamos arcar com a maternidade.

Nós somos criadas aprendendo a nos desconectarmos da realidade dos nossos corpos. O feminismo deve ser uma frente de luta para nos empoderar quanto a isso, não para apagar a nossa realidade material e nossas vivências!

Discussões recentes com transativistas retomaram essa discussão sobre os supostos“privilégios da maternidade”. O ativismo trans é de extrema importância para uma demanda de pessoas marginalizadas e que também não detém privilégio social algum. Mas falar sobre nosso corpo e nossa vivência não pode ser motivo de tentativas de silenciamento porque as mulheres trans, biologicamente, não tem a capacidade de parir. Temos particularidades diferentes, mas que não precisam se excluír, mas se complementar no ativismo feminista. O capacitismo, por exemplo, não é um privilégio biológico – eu não sou capacitista porque consigo andar com as minhas pernas, enquanto pessoas com deficiência precisam de muletas ou cadeiras de rodas. Mas porque o mundo todo foi construído para mim, com escadas, meio-fios, degraus. Porque eu consigo emprego de forma muito mais fácil do que uma pessoa cega ou surda. Porque eu tenho uma vantagem social de poder usar o que foi construído dessa forma. E não porque eu tenho olhos funcionais, ouvidos funcionais, um útero funcional. E o mundo não é feito para mulheres, tampouco para mulheres mães.

Privilégio é mantido pelo sistema opressor. Sem o sistema, sem privilégio. Não tem nenhum sistema opressor garantido o “direito de parir” e o “direito de não querer parir”. E o feminismo deve dialogar com essas particularidades da maternidade. Assim como deve falar sobre as particularidades das opressões das mulheres trans.

Nenhuma mulher deve se sentir culpada por falar do seu corpo e da sua vivência. Nossas experiências se complementam e não devem ser motivos para rompimentos, medo, coerção e silenciamento nos meios de ativismo. Interseccionalidade é sobre dialogar com todas as vertentes de opressão, e não silencilenciamento de mulheres que tem diferentes experiências da nossa.

Maternidade não é sobre privilégio. É sobre relação de poder, é sobre julgamento, é sobre controle, é sobre nossa autonomia.

[1] Slut-shamming: uma expressão da misoginia que incide sobre as mulheres as rotulando como ‘vagabundas’ ou ‘vadias’ de acordo com a maneira como expressam suas sexualidades